Já faz mais de um mês que estamos confinados a um raio de um kilômetro de nossas casas e hoje as restrições à circulação provavelmente serão estendidas por mais outra semana. Para muitos, por conta do inverno e de sua duração este tem sido o confinamento mais duro até agora, embora ele não seja o mais severo, que foi o primeiro. Durante o primeiro confinamento em Israel, não se podia sair mais de 100m de distância de casa e pouquíssimas eram as empresas e negócios que permitiram continuar a funcionar. Apenas mesmo supermercados, farmácias, obras e alguns outros poucos.
A obediência ao primeiro confinamento fora tanta, que os dias da semana se assemelharam ao sábado em matéria de gente na rua, um feito nada desprezível. Os dias da semana em Jerusalém costumam ser desgastantes. Carros barulhentos e buzinando e os israelenses a todo momento gritando e brigando. São um povo tosco, que desde a infância aprendem a necessidade de batalhar por tudo numa terra de recursos escassos e comunidades em tensão. Um amigo que eu considerava uma doce exceção à norma me surpreendeu uma vez gritando com uma mulher que tentava furar a fila “HEY GEVERET!” (Ô Dona!). Outro me aconselha toda vez que marco uma consulta médica “Antonio, você falou para eles que é uma emergência? Eles não vão te levar a sério se não for urgente.” Tudo é uma luta, um sufoco e sem a menor polidez. A etiqueta foi abandonada na pressa de construir o Estado. Registros polidos e formais foram inventados quando o Hebraico moderno foi “ressuscitado”, mas caíram inteiramente em desuso. E a noite pode ser tão desgastante quanto o dia. Pessoas sem noção passeando pelo centro, falando em voz alta. Gritos de gatos na rua brigando. Na sexta-feira pela manhã o caos se intensifica. Pessoas correm às lojas para fazer as compras antes do pôr-do-sol. Quando o pôr-do-sol se aproxima, as lojas começam a fechar. No mercado aberto Mahane Yehuda, um senhor ultraortodoxo começa a andar de loja em loja com uma trombeta importunando os lojistas tentando realizar suas últimas vendas. Daí ao horário oficial do começo do shabbat, soa a sirene, que se ouve em todo o centro da cidade. Nesse momento o transporte público já parou faz uma ou duas horas. As lojas todas já fecharam. Os cafés e bares também, exceto os poucos “seculares”. A paz desce sobre a cidade. A cidade para até o próximo pôr-do-sol e durante o intervalo os israelenses até parecem civilizados. As famílias se reúnem na medida do possível para jantar, não importando se observam ou não os mandamentos da lei. Sexta à noite é dia de família. Sábado, um dia para passeios. Andar por ruas ausentes de carro e pelo caminho do bonde abandonado. Cumprimentar a famílias que se encontra na rua com um “Shabbat shalom!”.
Algo que faltou nos dias tranquilos do primeiro confinamento, foram os poucos estabelecimentos que ficam abertos até mesmo no Shabbat. Sempre faço questão de introduzir recém-chegados à cidade à todas as opções. Em particular tem uma rua, Heleni HaMalka (Rainha Helena) que meus colegas de república de outrora chamavam “A rua dos apóstatas” por ter uma séria de bares e cafés abertos no dia santo. Mas até mesmo sair para sentar num tal café, almoçar um shakshuka e trabalhar no laptop tem todo um ritmo mais calmo no Shabbat do que no meio da semana. Realmente, quando a cidade para, aí é quando a civilização começa. Pelo menos é a impressão aqui. Uma volta à natureza – não aos espaços naturais, mas a um tempo natural. Abraham Heschel no seu livro The Sabbath apresenta lindas reflexões sobre o sentido do dia para o judaísmo, todos construídos na ideia do sábado como a santificação do tempo.
Uma das ideias que Heschel sublinha é o sábado como uma antecipação do mundo por vir. Ele conta a seguinte lenda:
“Na época em que Deus dava a Torah a Israel, Ele lhes disse:
– Meus filhos! Se aceitardes a Torah e observardes meus mandamentos, vos darei para toda a eternidade algo de tão precioso que tenho na minha posse.
– E o que, perguntou Israel, é a preciosidade que nos darás se obedecermos à tua Torah?
– O mundo por vir.
-Nos mostre neste mundo uma amostra do mundo por vir.
– O sábado é uma amostra do mundo por vir.”
Essa antecipação do fim dos tempos também sentimos na primeira onda do Corona: agora tudo será diferente, agora tudo precisa ser diferente. Como alguém disse no Twitter: “O Mercado está morto! O Mercado permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes?” E de certa forma a esperança apocalíptica dava sentido às privações e as medidas do confinamento. Agora no terceiro, onde o confinamento virou parte da rotina, e os israelenses já descobriram seu “jeitinho” e as mil maneiras de burlá-lo, há apenas a longa e sempre renovada espera pela “normalidade”.