Uma Visita à Livraria

“Na terra de Israel se ergueu o povo judeu, nela foi moldada sua identidade de espírito, estado e religião, nela o povo viveu sua vida com soberania e império, nela ele criou bens culturais nacionais e universais e legou ao mundo inteiro o eterno livro dos livros.”

Começo da Declaração de Independência do Estado de Israel

Jerusalém é uma cidade de ótimas livrarias, dentre elas a Book Gallery, HaGaleria LaSifrut, na pequena rua de pedestre Boris Schatz, entre uma loja de vinis e o deli “Oren e Yani”. A Galeriat Sifrut possui um vasto catálogo, do qual apenas uma parte se encontra à mostra nas suas labirínticas estantes. É fácil lá se perder entre os livros e as salas do subsolo, agachado sob o teto baixo, o nariz cheio do cheiro de livro. É um lugar bom para comprar não só livros, mas também pôsteres antigos e lá certa vez encontrei uma cópia fac-símile do Megillat HaAtzmaut, o pergaminho da independência, no qual está escrito a declaração de independência do estado de Israel e que foi assinado no dia 14 de maio de 1948. Foi para mim um achado, não por qualquer paixão política, mas por se tratar de um souvenir de Israel que não fosse kitsch.

O kitsch é apenas uma das mazelas estéticas que assolam o país. Outra é a redução de tudo ao aspecto pragmático e fatual. Por exemplo, paisagens lindas são arruinadas rotineiramente por blocos de concreto (apesar de haver tantas ruínas antigas aqui para inspirar o arquiteto!). Ou, por exemplo, a tradução da declaração de independência que se pode encontrar em inglês no site do parlamento israelense, que começa assim:

The Land of Israel was the birthplace of the Jewish people. Here their spiritual, religious and political identity was shaped. Here they first attained to statehood, created cultural values of national and universal significance and gave to the world the eternal Book of Books.

Na Wikipédia se pode encontrar uma tradução para o português que me parece ser baseada nesta tradução para o inglês:

A terra de Israel é o local de origem do povo judeu. Aqui a sua identidade espiritual, política e religiosa foi moldada. Aqui eles primeiro atingiram a formação de um estado, criaram valores culturais de significância nacional e universal e deram ao mundo o eterno Livro dos Livros.

Eu não sei bem o significado de “livre” quando Wikipédia adverte que isso seja uma “tradução livre.” Me parece um tanto servil. Mas já a tradução de knesset.gov.il suga toda a poesia do original. Em vez do polissêmico “קם”, apareceu, se levantou, ergueu, estabeleceu, erigiu temos “é o local de origem”. A repetida anáfora que remete á primeira oração “…בה…בה… בה”  se torna dois “aqui… aqui…”. “O povo” sai de cena como sujeito, substituído por “eles”. O poliptoto “חי חיי” (“viveu sua vida” na minha tentativa acima) é abandonado inteiramente e deixa “Livro dos Livros” sozinho, que em vez de ser “legado” é meramente “dado”. Quão longe do espírito dos primeiros sionistas que esperavam uma renascença cultural, um novo sentido pelo poder de sua língua e seus costumes pelo contato com a terra!

Já no caixa do sebo, pagando pelo meu pôster novo, recebi do dono o comentário: “Ah, o pergaminho da independência! É bom comprar agora antes que o proíbam!” Ele fazia referência aos debates em torno da lei fundamental ou básica “Israel, estado nação do povo judeu”, que fora recentemente aprovada no parlamento. As leis fundamentais ou básicas tomam o lugar da constituição em Israel e a lei fundamental do estado-nação fixou que “Israel é a pátria histórica do povo judeu” e “no estado de Israel o exercício do direito autodeterminação nacional é unicamente do povo judeu” dentre outras cláusulas. É possível ver aí de novo a redução da declaração poética da independência a um fato jurídico (que ignora outros fatos, como por exemplo, o fato de que o povo eleito na Bíblia migrou para a terra prometida do Egito e que (portanto) não surgira dela). Na época, várias vozes, principlamente da equerda, disseram que a lei contradizia outros parágrafos da declaração de 1948, que asseguravam a cooperação mútua dos judeus com seus vizinhos árabes e cidadania igual para todos os habitantes do estado. Havia até quem compartilhasse no Facebook imagens editadas do pergaminho, com as passagens “obsoletas” apagadas.

Eu não quero com as minhas críticas da mentalidade local encorajar o velho estereótipo cristão do judeu que é incapaz de entender o sentido espiritual das escrituras e reduz tudo á lei, á terra e á carne. Um símbolo evangélico não é sempre uma realidade social e a cultura israelense contemporânea não deve ser confundida com a cultura judia. Por isso convém terminar o meu relato com uma anedota sobre como o pergaminho da independência expandiu minha compreensão de quem são os judeus. Meu fac-símile ficou pendurado no meu quarto por algumas semanas antes que eu tentasse lê-lo pela primeira vez. E não passei das linhas acima traduzidas antes que me espantasse. Com dificuldade eu entendi seu conteúdo:

“Na terra de Israel se ergueu o povo judeu,

nela foi moldada sua identidade de espírito, estado e religião,

nela o povo viveu sua vida com soberania e império,

nela ele criou bens culturais nacionais e universais

e legou ao mundo inteiro o eterno livro dos livros.”

“Mas, como assim” me perguntei “os israelenses vindicam a bíblia para si?”. Era uma idéia engraçada. Mas nenhum dos meus amigos, seculares que fossem, acharam graça alguma na indagação. E foi assim que a obviedade das obviedades se revelou a mim: os judeus israelenses são… judeus! Por razões que convém explorar mais em textos futuros, essa é uma verdade que é fácil perder de vista em Israel. Há tantos discursos sionistas que prometiam a radical transformação do povo e outros tantos discursos críticos (da esquerda e de ultraortodoxos) negam que haja continuidade entre os judeus israelenses e os judeus históricos, sem falar nos conhecidos meus que estariam igualmente em casa entre gentios alemães ou americanos e até prefeririam estar em Berlim ou Nova Iorque. Mas, pela declaração de independência e a língua que eles falam diariamente fica difícil de negar que eles sejam, de fato, um povo do livro dos livros.