Neve em Jerusalém

Dizem ser Jerusalém a cidade dividida pelas três grandes religiões monoteístas: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islã. Mas nesta semana a vimos unida num grande feriado da religião natural: a neve. Na quarta-feira de cinzas uma nevasca que continuou até a madrugada de quinta cobriu a cidade com branco, frio e fofo. O trânsito parou. Já à noite, centenas de habitantes foram para o grande parque da cidade, Gan Sacher, brincar e gozar do elemento natural. Enquanto uma repórter de um canal local noticiava as diversões frente a um homem-de-neve, um cachorro lépido e alegre com um salto entrou na imagem e arrancou-lhe o nariz cenoura. Na quinta, as escolas não cancelaram as aulas, como sói, pois elas estão sendo conduzidas via zoom, mas o começo do dia foi adiado até as nove para as crianças.  

O entusiasmo jerusalemense pela gélida cobertura é tão mais surpreendente quando comparada com sua reação a chuva. Perante a chuva, o israelense desiste de todos seus planos e fica em casa. E não falo aqui da chuva torrencial que conhecemos em Brasília, onde por duas ou três horas parece que o céu cai. Até mesmo a chuva chata de dia inteiro que o inglês conhece simplesmente como “o tempo” é o bastante para causar desânimo geral na cidade. Já estive na festa de aniversário de um bar dono de uma leal clientela que nas quintas-feiras o enche ao ponto da locomoção ser difícil e a audição impossível quando choveu. O local não chegou a encher nem mesmo metade de sua capacidade.

O amor local à neve é uma forma mais intensa do sentimento do berlinense em um dia ensolarado. De forma geral, o alemão é mais estoico em relação ao tempo do que o israelense. Como me informaram quando cheguei na capital alemã “não existe tempo mau, apenas roupas inadequadas à estação.” No entanto, sugerir para um berlinense se encontrar dentro de casa ou no escritório num dia ensolarado é o equivalente de admitir que você é um filisteu, ignorante das coisas boas da vida, negligente com a própria saúde, e incapaz de raciocínios práticos básicos. No Brasil de vez em quando nos atrasamos “por causa do relógio”. Pois bem, em Berlim já ouvi estudantes me explicarem “fui incapaz de trabalhar ontem porque era dia”. Todo ano há dias bonitos em Berlim. Seis anos passaram desde que a última nevasca cobriu Jerusalém e o entusiasmo é o tanto maior pela espera.

Em Berlim, onde a neve é regular e as noites de inverno longas, aprendi a apreciar a luz que a neve traz a cidade. Uma cidade branca é uma cidade que reflete a luz noturna e abre um pouco o coração angustiado sem ver o sol o dia inteiro. O inverno não deprime Jerusalém como ele deprime Berlim, mas todos repetem: “Como a neve é linda!” E por que o branco seria lindo? Plotino no seu ensaio sobre o belo levanta como uma objeção àqueles que identificariam a beleza com a simetria que nós dizemos que a luz, e o ouro e cores podem ser belas, sem que distingamos partes neles. Ele não retorna ao assunto, mas me parece que a resposta seja a seguinte: a luz e o branco da neve são belos, pois é belo o que atrai o conhecedor ao conhecido, e o que é a luz senão a união na evidência do vidente com o visível? Uma cor cheguei ou uma luz néon são como as intimidades forçadas, os estranhos que te agem como amigos de longa data. A cidade branca aparece pelo contrário como uma amiga que te convida sem se impor, um calor para a alma para corpos frios. Como um poema do artista Robert Montgomery que certa vez vi exposto em Berlim “The city is wilder than you think and kinder than you think. It is a valley and you are a horse in it, it is a house and you are a child in it, safe and warm here in the fire of each other.”

A neve parece estabelecer uma simpatia entre a cidade santa e a capital secular. Mas da mesma maneira que ela veste Jerusalém como uma noiva, ela também é revestida de significados religiosos. O branco da neve é um símbolo da pureza e assim também um símbolo de estar livre do pecado, entendido como sujo. E Jerusalém é de fato uma cidade suja: não só de lixo, como de sangue. Sendo um símbolo de pureza, a nevasca é um símbolo do perdão. Ela tudo cobre e nos convida a um novo começo. Como o perdão é o poder divino de iniciar uma nova criação, o branco da neve também é o branco das vestes do Ancião dos Dias no livro de Daniel e das vestes do Cristo Transfigurado no monte Tabor. Por fim, os picos das montanhas são brancos e os lugares altos são tradicionalmente locais mais pertos de Deus.

De fato, é por estar nos montes que Jerusalém recebe a neve. Jerusalém é o último lugar onde as nuvens quebram entregando sua posse de chuva, neve ou granizo conforme o tempo. Ao oeste está a praia húmida de Tel Aviv, ao leste deserto até as proximidades do Jordão. Entre o mar de Tiamat e o rio do batismo, a cidade santa regojiza com a síntese sazonal do secular com o sagrado: o feriado da neve.

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