Semana passada a páscoa Judaica coincidiu com a semana santa dos cristãos latinos. São duas de várias páscoas que se celebram em Jerusalém este ano. E em 2021, o “feriado da liberdade” (חג החירות) comemora não só o fim da escravidão no Egito, mas também o fim dos confinamentos de 2020. Após um ano de lockdowns regulares, o primeiro que chegou a nos confinar a um raio de 100m de nossas casas, a vida normal retorna ao país. Mais de 55% da população já foi vacinada e os Israelenses se sentem à vontade mais uma vez para sentar em restaurantes, se encontrar em cafés e se divertir em festas e bares. É preciso mostrar um certificado de vacinação para sentar no interior de estabelecimentos, máscaras continuam obrigatórias e há limites de quantas pessoas podem se congregar, mas de modo geral o clima é de “fim do Corona.”
E a partição dos mares pela Pfizer vem em bom momento, pois a páscoa celebrada sozinha não é uma páscoa que se celebra direito. Ano passado várias famílias judias tentaram se reunir via Zoom para o tradicional jantar no início da páscoa judaica, o Seder, mas esse ano foi possível se reunir em pessoa. Pela primeira vez nos meus quatro anos aqui fui honrado com um convite por um amigo e participei de um jantar com 35 pessoas de quatro gerações distintas ao redor da mesma mesa!
“Seder” significa “ordem” em hebraico e o jantar é conduzido de acordo com uma ordem estrita de leituras e atos simbólicos que lembram o êxodo dos judeus do Egito. Há vários trechos a serem lidos e cantados antes que o jantar possa começar, de forma que o jantar sempre é temperado com o melhor dos temperos, a fome.
O jantar ocorre no início do feriado da Páscoa, que dura uma semana inteira. É um dos feriados de peregrinação, quando judeus tradicionalmente “sobem” para Jerusalém. E assim a cidade voltou à vida. De repente, temos ruas engarrafadas e lojas abarrotadas, todas cheias com esse personagem típico da paisagem jerusalemense: o turista! Como ele faz falta! De fato, agora só nos visitaram turistas domésticos, pois a entrada de estrangeiros ao país segue bastante limitada por causa da pandemia. Mas os israelenses já foram o bastante para devolver um pouco de cor à cidade.
Afinal, pertence a Jerusalém que haja sempre pessoas e caras novas passando por ela, religiosos e seculares, de religiões e povos vários. “Irão muitas nações e dirão: Vinde, e subamos ao monte do Senhor.” É parte da vocação cosmopolita de Jerusalém, uma cidadania global fundada na sua história tanto secular quanto sagrada. Nada mais próprio que o “umbigo do mundo” de um mundo caído seja uma capital dividida. Não é o cosmopolitismo do sistema de bolhas de Nova Iorque, Berlim e Tel Aviv, exemplos não de como ser cidadão do mundo, mas da fuga planetária do capital.
A cidade, como disse, ainda não voltou inteiramente a sua gloriosa variedade, embora os israelenses por si já sejam uma população bastante diversa, provindos de inúmeros países e culturas distintas. No entanto, a falta de peregrinos cristãos ofereceu uma oportunidade única para os cristãos locais na semana santa, pois foi possível visitar os lugares santos nos dias santos sem que a experiência religiosa fosse comprometida pelo incômodo logístico de navegar massas de fiéis. Assim pude ir para a celebração de Sexta-Feira Santa no Gólgota e a Páscoa ao lado do túmulo. E quando ouvi o Evangelho descrever o encontro com o anjo no túmulo foi com espanto que contemplei o lugar, ali, ao meu lado, onde Cristo ressuscitou.
Mas a páscoa dos latinos não é a única páscoa cristã de Jerusalém. A maior parte dos cristãos locais pertencem a uma das várias igrejas orientais, que marcam a páscoa pelo calendário juliano. Ela cairá no dia 2 de Maio de 2021 e oferecerá outro ciclo inteiro de liturgias para comemorar a morte e ressureição de Nosso Senhor, inclusive o famoso “fogo sagrado”, o anual milagre do fogo que desceria espontaneamente sobre as velas que o patriarca carrega consigo para dentro do santo sepulcro.
E fora a páscoa oriental, há uma última páscoa “cristã” aqui: o dia da independência do Estado de Israel, יום העצמאות, nos dias 14-15 de Abril. Essa é uma páscoa para aqueles judeus religiosos que veem um significado messiânico na fundação do Estado de Israel, entendendo-o como uma última redenção do povo judeu. Assim como Deus uma vez tirou os judeus de uma só terra (o Egito) para uma liberdade temporária na terra de Israel, agora nos nossos dias ele teria conduzido os judeus de todas as terras para os juntar no Estado de Israel de uma vez para sempre. Assim, o dia da independência celebraria uma segunda páscoa, maior ainda do que a páscoa original.
Os sionistas religiosos que assim sintetizam sua política com sua religião são uma minoria na sociedade israelense e tiveram o auge de sua influência no movimento de assentamento que seguiu à guerra dos seis dias em 1967. Mas em 2005 o governo israelense decepcionou seus devotos mais religiosos, pois ele retirou (à força em alguns casos) os assentamentos da faixa de Gaza, que foi visto como se o Messias desse um passo para trás no processo da redenção e reconquista da terra. Desde então, o campo do sionismo religioso vive uma espécie de crise intelectual.
A semelhança entre os sionistas religiosos e os cristãos é obscurecida pelo fato de que os Cristãos são chamados de נוצרים, “nazarenos” em hebraico, como se o cristão fosse apenas um seguidor dos ensinamentos de “aquela pessoa” (אותו האיש), Jesus de Nazaré. Mas “cristão” vem da palavra grega Xριστός, o ungido, que traduz המשיח, o messias, isto é, o rei ungido prometido da casa de Davi, e o cristianismo não é tanto apenas uma devoção aos ensinamentos e modo de vida de um só homem, como a crença de que o Messias veio, conquistou a morte, e trouxe à humanidade a redenção dos pecados, uma redenção final que celebramos na Páscoa. Os sionistas religiosos e cristãos discordam quanto à identidade do messias e à natureza da redenção, mas tantos uns quanto outros moldam suas vidas com base na convicção de que a redenção não é mais um acontecimento futuro, mas uma realidade presente que exige a reforma de suas vidas.
Pretendo retornar aos sionistas religiosos em outro post, já que por mais que sua síntese possa parecer uma forma de idolatria do Estado aos olhos de um cristão, ele tem muito de interesse para a compreensão do fenômeno do secularismo e das relações entre Igreja e Estado. Por enquanto, eu termino este texto desejando a cada leitor uma feliz Páscoa para todas as Páscoas.