De volta à Brasília

Meu coração está no oriente e eu no profundo poente.

Como provarei meus comes e como neles deleitarei?

Como pagarei meus votos e cumprirei minhas promessas, enquanto

Sião sofre sob Edom e o eu sujeito do árabe sou?

Fácil aos meus olhos é deixar todo o bem da Espanha,

Quanto cara aos meus olhos é a visão das cinzas do santíssimo destruído.

Yehuda HaLevi (*1070 Navarra – †1141 Jerusalém)

לִבִּי בְמִזְרָח וְאָנֹכִי בְּסוֹף מַעֲרָב

 אֵיךְ אֶטְעֲמָה אֵת אֲשֶׁר אֹכַל וְאֵיךְ יֶעֱרָב

אֵיכָה אֲשַׁלֵּם נְדָרַי וֶאֱסָרַי, בְּעוֹד

צִיּוֹן בְּחֶבֶל אֱדוֹם וַאֲנִי בְּכֶבֶל עֲרָב

יֵקַל בְּעֵינַי עֲזֹב כָּל טוּב סְפָרַד, כְּמוֹ

יֵקַר בְּעֵינַי רְאוֹת עַפְרוֹת דְּבִיר נֶחֱרָב

Traduzo aqui, segundo minha limitada capacidade, o curto poema do filósofo e poeta medieval Yehuda HaLevi sobre seu desejo de retornar à terra santa. O poema é um classico da literatura hebraica, mas não tinha lido até um caro amigo o transcrever em uma carta de despedida. Seu sentido muda bastante na minha tradução, especialmente pelo lugar e pelo tempo.

O oriente é o mesmo, Jerusalém, mas o ocidente é outro: da Espanha para o Brasil. Um poente mais profundo em vários sentidos. A palavra hebraica מערב  Ma’arav, ocidente, é cognato com ערב, erev, tarde (como em “e foi tarde e foi manhã, um dia”), mas também com עירוב, iruv, mistura e לערב, le’arev, dar prazer. Na tradição judaica os pecados do povo no deserto são atribuídos à ערב רב, erev rav, a “multidão misturada” de gentios que saíram junto com os israelitas do Egito e foram incorporados ao povo. No nosso poema HaLevi se pergunta como ele pode se deleitar nas suas refeições durante o exílio, וְאֵיךְ יֶעֱרָב.  E o que é o Brasil senão o país construído sobre uma grande mistura, como observou Gilberto Freyre, na decisão da coroa da “míuda gente portuguesa” de se misturar aos povos que encontrava eescravizava, praticando um rapto das Sabinas para o bem de sua nova Roma Cristã? Decisão oposta do povo pequeno de Israel, de manterem sua particularidade em todo lugar de seu exílio. E que dizer então dos prazeres que atiçaram a cobiça portuguesa? De fato, o Basil é um Ma’arav mais poente que o Espanhol.

Mas Jerusalém também não é a mesma. Jerusalém contemporânea está liberta do jugo de Edom, isto é, dos Cristãos, e é isso em parte o que cativou meu coração lá, a experiência da cultura israelense, da cultura judaica liberta das amarras do exílio, de sua franqueza e suas contradições, seus impossíveis exageros em meio ao deserto. HaLevi se pergunta do sentido de suas obrigações no exílio, um problema tradicional do pensamento exílico, uma vez que os mandamentos na Bíblia estão claramente ancorados na posse da terra: se o povo for fiel a Deus, ele usufruirá da terra, senão a própria terra os rejeitará. Assim surge a pergunta “por que é preciso obedecer aos mandamentos no exílio?” Os rabinos sempre estiveram de acordo de que é preciso obedecê-los, mas as razões dadas variaram ao longo dos séculos. Em Israel contemporânea se obedece mandamentos até sem pensar: se fala a língua sacra, se descansa no sábado e nos feriados, a maior parte da comida nos supermercados e dos restaurantes é kosher (embora a cozinha em casa não seja), etc…

Por fim, o santíssimo destruído não é o mesmo. Para HaLevi era o santuário do templo em Jerusalém, que mesmo em ruínas era mais valioso que toda a riqueza da Espanha que ele connhecia. Hoje em Israel há quem diga, não sem certa razão, que hoje estamos mais perto da construção do terceiro templo do que Theodor Herzl, o visionário do Estado judeu, jamais esteve da realização da independência do povo judeu. Eu conheço vários judeus religiosos para os quais a reconstrução do templo é uma persepectiva terrível, uma opinião até compreensível. Afinal, a cultura judaicados últimos dois milênios se construiu a partir das cinzas to templo. E são essas cinzas férteis que me são tão caras, mesmo agora na terra da mistura occidental.

A mudança de um país para outro é mais que o traslado de uma carta e voltarei ao tema da volta ao Brasil. Mas nem por isso o blog passará a ser chamado “Um Platonista Brasileiro no Brasil”: há ainda muito a compartilhar sobre a cidade que deixei e espero continuar a refletir sobre minha experiência lá nas semanas por vir.