Uma escola psicanalítica bem presente em Israel é a psicologia junguiana. Elaborada por Carl Gustav Jung, o analista suíço e estudante de Freud, ela foi trazida para a Palestina por seu estudante judeu Erich Neumann, que era também um sionista e emigrou em 1934. Dessa forma, a assim chamada “ciência judia” de Freud acabou chegando a Israel por intermédio de seu discípulo ariano!
A psicologia de Jung é conhecida entre outros feitos pela sua teoria dos arquétipos. Da mesma forma que o ser humano herdaria instintos, padrões de comportamento, seus ancestrais lhe legariam também arquétipos, isto é, padrões de conhecimento pelos quais ele faz sentido de sua vida. Esses esquemas cognitivos seriam expressos nas imagens arquetípicas dos mitos e dos ritos, daí a importância do estudo da mitologia na psicologia junguiana. A mitologia era uma forma do analista resolver o problema da chamada “equação pessoal”: como pode o psicólogo julgar a saúde mental de outro, se ele mesmo só julga os outros com base na sua própria mente? Como obter um padrão “objetivo” de saúde mental? A norma seria dada pelos mitos, que encapsulariam a perspectiva humana normal. Aqui haveria dois extremos a se evitar. Por um lado, o extremo moderno, o homem racional que nega a tradição e desconhece que sua vida é uma vida formada pelos mitos. Ele está fadado à frustração e ao fracasso, na medida que ele não reconhece que ele vê a sua vida à luz dos arquétipos e assim está fadado a repeti-los. O outro extremo é o fanático, que se identifica imediatamente com seus mitos ou com um personagem mítico. Esse esquece que ele é um ser humano e não uma história e igualmente está fadado a cair por terra como Ícaro. A psicologia junguiana tem como ideal de saúde assim uma vida consciente dos arquétipos, sem se identificar com eles.
Em Jerusalém, é possível encontrar ambos os extremos. Há os sionistas ultramodernos que nada querem saber de sua tradição religiosa. A rejeitam, e a consideram na realidade fonte de seus males. Veêm na parcela religiosa da cidade como um corpo parasítico no seu projeto nacional e culpam o fanatismo religioso pelo conflito. Há também versões palestinas da mesma atitude. Por outro lado, há a síndrome de Jerusalém: pessoas que se identificam com algum personagem e profeta bíblico, incapazes de processar o peso psíquico da cidade. Isso nem sempre as torna incapazes de viver em sociedade. Um amigo meu tinha um médico convencido de ser também um profeta. E também há casos que nem chegam a ser patológicos, como o americano que é visto frequentemente na cidade velha, vestido em trajes simples, parecido com representações americanas de Jesus.
A tarefa da psicologia junguiana não é muito distante da filosofia como eu a entendo. Algo especial da filosofia de Vicente Ferreira da Silva é justamente sua consciência de que a arena da filosofia é justamente o plano das influências divinas. Ele, porém, tem uma agenda fanática de ser um instrumento dessas influências e se deixar arrebatar por seu fascínio. Para mim a filosofia é justamente uma forma de mediação e luta entre as várias potências numinosas, não uma mera submissão a elas. Ela é o exercício da razão natural, não enquanto a faculdade de pensarmos sozinhos, mas o poder de pensarmos junto com todos os espíritos.
Aí está parte da grande fecundidade filosófica de Jerusalém, uma cidade explodindo com numinosidade. Até mesmo o hebraico moderno foi chamado por Gershom Scholem a um vulcão pelo significado teológico enterrado nas suas expressões do dia-a-dia. Eu tenho um amigo que todo no dia no seu trabalho anda pelas ruas que Jesus andou. A vista que tiveram os romanos da cidade de Jerusalém quando a cercaram é a vista que se tem da universidade hebraica no monte da vista, Mount Scopus. Isso sem falar no Gólgota, no muro das lamentações, no domo da rocha. Essa é uma cidade cheia de cicatrizes deixadas pelos deuses, onde a filosofia é urgente.