Fim de semana em Akko

Estando no meu ano final em Israel, decidi visitar a antiga Akko ou Acre. Ela é uma pequena cidade costeira no norte do país que já é mencionada em documentos egípcios de  aproximadamente 1800 a.C. Hoje, como em outras cidades históricas, há em volta da cidade antiga de Acre uma expansiva “cidade nova.”  Dentro da cidade antiga as ruas são estreitas e labirínticas, e o tempo que eu tencionava ganhar ao visitar a cidade pequena, eu perdi perdendo o caminho.

Há muito o que visitar lá, especialmente da época dos reinos cruzados quando a cidade fora importante e também do período Otomano.  Num café frente ao mar assisti as ondas baterem num sábado de mau tempo trazia uma escrita na parede atribuída a Napoleão: “Se não tivesse sido derrotado em Acre contra Jezzar Pasha dos Turcos, eu teria conquistado todo o Oriente.” A derrota do ditador iluminista me pareceu motivo de curioso orgulho. Será que sua teria sido tão somente nefasta? E mais, o governador que o resistiu recebeu o nome de “Al Jazzar” – o açougueiro – tamanha a sua crueldade. Ele certamente foi importante para o crescimento e a infraestrutura de Acre, mas ver seu nome relembrado a cada esquina da cidade antiga me pareceu um caso de síndrome de Estocolmo.

Como a cidade antiga de Jerusalém, Acre é uma cidade murada e como Tel Aviv ela é uma cidade que enfrenta o mar. Nela também vi as placas indicando rotas de fuga em caso de tsunami.  Ao longo de todo o muro, que se volta para o mar, há outras placas alertando: é proibido escalar o muro. No entanto, inúmeras pessoas podem ser vistas caminhando em cima do muro. Habitantes locais, na sua maioria homens jovens, desafiando uns aos outros a saltar no mar e enfrentar o perigo. Uma performance arrepiante para mim, não só pelo risco da peripécia, mas porque ela ocorre em meio ao perigo de uma situação proibida — “estar em cima do muro”. Mas os locais riem e gargalham, confiantes de seu senso de quais proibições são “verdadeiras” e quais são “para inglês ver”, como diríamos.

Tal discernimento legal é algo que até hoje eu não aprendi aqui em Israel. Os israelenses sabem distinguir quando uma nova lei, uma nova regra, por exemplo, de confinamento, é para ser levada a sério e quando ela pode ser ignorada impunemente. Mas nós estrangeiros em geral tentamos segui-las à risca, pois não temos a certeza ou a temeridade dos nativos de lidar com a polícia, caso ela apareça. De vez em quando, as regras em vigor mudam de um lugar para outro. Aqui em Jerusalém, o uso de máscaras é regra. Em Akko, nem tanto.

A liberdade levantina quanto à obediência à lei torna a vida um tanto caótica em Israel. O sucesso do programa de vacinação pode enganar a muita gente e dar a impressão de que Israel tenha alguma seriedade invejável. Mas a experiência do novo coronavírus para quem mora no país foi de caos. Regras novas constantes, ministros de estado se desdizendo, desobediência flagrante de algumas comunidades, uma atrapalhação digna de uma sessão da tarde “com muita confusão”. Tanto que Netanyahu não teve qualquer grande ganho eleitoral pela campanha da vacinação. Depois de um ano de COVID-19 houve a quarta eleição parlamentar em dois anos e os israelenses voltaram a mostrar que quando a pergunta é “to Bibi or not to Bibi”, eles não sabem o que querem.  

Em Israel de modo geral se pode dizer: é proibido subir no muro, tanto no sentido figurado quanto literal. Como um amigo recentemente compartilhou a respeito da situação no Brasil:

“O Brasil vive antagonismos políticos que não podem ser nomeados sem que, automaticamente, você assuma uma posição. Estes antagonismos hoje não tomam a forma de uma diferença, mas de um diferendo: aquela diferença que é inominável em língua neutra, uma cisão tão decisiva que só pode ser nomeada uma vez que você se instala no interior da cisão mesma, em instalação contemporânea ao próprio ato de nomear.” (Idelber Avelar, Introdução a “Eles em nós”, apud Ingrid Robyn)

Não há maneiras neutras de descrever vários conflitos na Terra Santa. Até mesmo os nomes são carregados de potencial para conflito. Chamar a terra de “Palestina”, foi originalmente uma nomeação Romana anti-judaica, dando à terra deles o nome de seus inimigos os filisteus. Cometi a gafe na primeira festa que fui aqui de trazer um vinho de Judéia e Samária, ou seja, vinho de um assentamento na Cisjordânia. (A minha anfitriã alemã foi tolerante, afinal ela pode expressar sua alta moralidade com um revirar dos olhos e um sorriso sem graça.) O antagonismo frustra até mesmo os antagônicos: “Antonio, eu sei que teu amigo é suposto ser alguém inteligente, mas eu simplesmente não consigo imaginar como ele adota as suas posições.” No Brasil ainda não chegamos ao ponto de que até mesmo o nome do país é motivo de controvérsia, mas por quanto tempo?