Missa em Jerusalém

Capela do Austrian Hospice na Cidade Antiga de Jerusalém. Brasões memorializam peregrinações da realeza austríaca para Jersalém.

Quarta-feira próxima começa a quaresma com a quarta-feira de Cinzas. Época para avaliar a vida e confessar os pecados para poder comungar na páscoa. Um dos choques que levei me mudando de Berlim para Jerusalém, foi que nada me preparou para a dificuldade de ser católico na cidade santa, dificuldade maior do que qualquer encontrada na capital prussa. Podia ter sido diferente. Desde 2013 eu rezava com maior ou menor assiduidade a liturgia das horas, onde diariamente expressamos saudades de Sião e nossa descendência de Abraão, filhos de sua fé, pois filhos da ressurreição. Estar na terra santa poderia ter sido um lugar de grande florescimento da vida espiritual. Porém, já de início encalhei na falta de infraestrutura.

A confissão é um bom exemplo. Em Berlim há várias Igrejas com horários regulares de confissão, aos quais se pode ir com a certeza de encontrar um padre disponível e à espera de penitentes. Em Jerusalém há provavelmente mais padres do que leigos católicos, e há mais missas sendo oferecidas diariamente que em Berlim inteira, mas não há nenhum lugar confiável para se confessar regularmente. Os franciscanos no Santo Sepulcro anunciam horários regulares, mas já tive a experiência de ligar de antemão para confirmar o horário das confissões e nenhum padre aparece. Um pouco do caos levantino penetra toda instituição aqui e ademais, o santo sepulcro, bem como tantas outras igrejas, não vive em função de uma comunidade local, mas de peregrinos, fantasmas agora na época de covid. Horários regulares, então, estão sempre sujeitos a mudanças bruscas por causa de “um grupo”. Outra opção é o Notre Dame Centre sob os cuidados dos legionários de Cristo. Lá eles têm não só missa diária, como também adoração diária ao Santíssimo. Então, se você quiser se confessar, você é convidado a interromper o padre no meio de sua adoração de Nosso Senhor Jesus Cristo para pedir que ele ouça sua confissão. Os padres sempre ouvem de bom grado, mas o sacramento da reconciliação não deveria ter que competir com a atenção dada a Nosso Senhor.

Fora a confissão, há a missa. Como disse, não faltam missas em Jerusalém, especialmente se você for poliglota. Há padres e comunidades religiosas aqui do mundo inteiro. Porém, em sua maioria elas não constituem verdadeiras comunidades para os leigos, que sem sua maioria apenas estão visitando a terra santa e até mesmo os estrangeiros que moram aqui passam apenas poucos anos. Estando aqui faz quatro anos já vi vários companheiros de missa chegarem e partirem. E quando há uma comunidade estável – as comunidades árabes, ou os filipinos imigrantes, por exemplo – é comunidade étnica mais d que religiosa. Como toda essa variedade não seria unida, como ela não se apresentaria de modo diferente aos olhos do mundo também se as Igrejas celebrassem todas uma mesma missa! Em vez disso, se vê um esfacelamento da Igreja, que é tanto mais aparente quanto se vê a solidez do Estado Judeu em cada canto. Sim, os judeus israelenses estão sempre a ponto de uma guerra civil, mas eles travam suas discussões falando uma língua comum e a respeito do bem comum de seu estado compartilhado. E isso sem falar na divisão com outros cristãos e nos vergonhosos embates entre religiosos nos lugares santos.

Eu já frequentei várias Igrejas aqui, mas a minha comunidade principal é um pequeno grupo de estudantes de línguas que celebram a missa em latim – outrora no rito dominicano, agora no rito tridentino. A maior parte dos estudantes viajou no verão e ainda não pode voltar por causa do Corona e das restrições de viagem, que são enviesadas contra instituições de ensino que não são judaicas. Hoje somos só quatro: eu, um amigo, o padre e uma senhora alemã. Sobrevivemos principalmente pelos bons ofícios do meu amigo que primeiro organizou a missa. Poucos são os padres preparados a rezar a missa tradicional, e poucas também são as capelas preparadas a ceder seu espaço. Mas quando podemos, nos encontramos e rezamos a missa tradicional. O silêncio em várias partes da missa e a ausência de respostas e cantos constantes permite que cada um reze à sua maneira, sem a uniformidade forçada em afeto, canto e gesto da nova missa.

Outras vezes, particularmente agora durante os confinamentos do corona, durante os quais não pudemos congregar para a missa em latim pelos limites de distância, fui à missa da comunidade de língua hebraica que é a Igreja mais perto de mim. Em épocas normais um católico brasileiro se sentiria bem em casa lá. A cantoria constante, o violão acompanhando, as surpresas e novidades litúrgicas. Agora, no corona, as limitações impõem uma certa disciplina que também me tornam possível concentrar e rezar. Mas há algo especial em ouvir a missa em hebraico, em escutar as leituras do antigo testamento em sua língua original, em discernir no nome mesmo de Jesus a raiz da palavra salvação. Já havia uma tradução autorizada da missa em hebraico nos anos cinquenta, antes das reformas litúrgicas, parte de um esforço de padres franceses de evangelizar os judeus. Entretanto, poucos membros da comunidade de língua hebraica são judeus convertidos, a maior parte sendo trabalhadores imigrantes.

Há entre a missa em latim e a comunidade em língua hebraica algo que se perde. Na missa tridentina há um senso da universalidade e da antiguidade da Igreja, de sua herança do multiculturalismo do império romano tardio, do missa como a nossa participação mística no sacrifício da cruz. Na paróquia hebraica eu encontro uma comunidade cristã estável, conectada ao lugar e entre si, mas que pela língua está desconectada com as outras comunidades, pelas novidades litúrgicas se desliga da tradição e em que em dias cheios e movimentados me parece desligada de qualquer caráter solene. Em certo sentido, a Igreja ainda não passou pelo processo de se tornar um povo que o concílio Vaticano II pediu. A Igreja ainda há de se tornar uma nação, ou de se incorporar em uma nação. Uma nação católica, universal composta de todas as nações. Não como as nações européias e delas surgidas, que saíram do seio da Igreja, mas logo se apartaram dela, cada uma querendo ser a mais cristã que todas as outras. Muito se fala na blogosfera católica de língua inglesa hoje sobre “integralism”, a doutrina política da Igreja de que o estado deve zelar pelo bem comum natural e a Igreja pelo sobrenatural e que o estado deve se subordinar à Igreja. Mas antes de um estado católico será necessário cultivar uma nação católica. Espero publicar um texto sobre o assunto em breve.