“Sem ter lido Homero, você jamais verá o mar!” Sempre me lembrarei deste slogan que um professor de línguas clássicas me contou como exemplo de uma promessa que o levou nos anos sessenta a estudar Grego. Ele lamentava que a filologia, hoje mais autocrítica, não se via mais capaz de fazer promessas semelhantes, de modo que os jovens hoje preferiam estudar políticas públicas a ler os clássicos. O deprimente fenômeno de uma geração que vê na administração seu campo possível de heroísmo.
A autocrítica das letras clássicas tem como um de seus enfoques o eurocentrismo da pretensão de que só o cego autor da Ilíada te dá olhos para ver o mar. Morando aqui em Israel, é fácil ver que tal discurso é um calcanhar de Aquiles. Várias mentes brilhantes que em outros países se dedicariam ao estudo do grego e do latim aqui estudam a tradição judaica. “Que temos nós a procurar entre os gregos?” E com certa razão: com olhos hebraicos também é possível ver o mundo, inclusive o mar.
O apocalíptico fundador do moderno estudo da Kabbalah, Gerschom Scholem, escreveu em 1926 para seu amigo Franz Rosenzweig: “Esse país é um vulcão: ele hospeda a língua!” Contra seus contemporâneos, que se preocupavam com os árabes e outras forças que eles temiam fossem derrotar o empreendimento sionista, Scholem pensava que o destino do assentamento judeu seria determinado pela sua língua: “Não está no nosso poder, todo dia se valer dos antigos nomes sem invocar sua potência.” Ele via uma possível “revolução da língua” contra aqueles que a falam como a verdadeira ameaça. São os sinais de tal revolução que alertam o estrangeiro para uma cosmovisão toda própria e local.
Tel Aviv é uma cidade moderna, consciente de si como tal. “A cidade que surgiu da areia”, obra do novo homem sionista, que celebra sua diferença e ruptura com a tradição. Não há em Tel Aviv grandes monumentos ou estátuas – uma grande frustração para quem quisesse participar da grande onda global iconoclasta na primavera passada. Mas há sinais discretos que apontam, apesar de todo desejo de novidade, para uma longa tradição subterrânea. Nunca deixo, por exemplo, de lembrar os salmos quando vejo uma placa como aquela retratada acima, avisando banhistas do perigo de um maremoto e da rota de fuga adequada.
As placas são uma anomalia na cidadela do último homem. Em meio à tranquilidade da praia e dos arranha-céus de uma economia pujante, aparecem avisos de uma catástrofe que se avizinha. As placas foram colocadas em 2017, o que significa que quando cheguei á cidade os encontrei já prontos e pensei que fossem tão antigas quanto toda a sinalização de trânsito. Mas até hoje nem todos os telavivenses as entendem. Certa vez um morador me comentou que ele não tinha certeza de seu sentido, talvez fosse uma espécie de crítica social. Na realidade, foram uma resposta da prefeitura a um estudo sobre o risco de um possível maremoto. O último chegou às praias em 1956 como consequência de um terremoto nos mares gregos de Homero e tsunamis ocorrem por volta de uma vez ao século no mediterrâneo. A prefeitura pensou por bem se precaver contra atos divinos.
Mas é nas sagradas escrituras que penso no meio da orgulhosa cidade quando vejo tais avisos na renovada língua bíblica contra catástrofes do mar. Repetidas vezes na bíblia e em particular nos salmos “as águas” ou “o abismo” aparecem como uma ameaça terrível. No salmo 104 a criação da terra é descrita como um confronto de Deus com o abismo, que precisa estabelecer os seus limites para que as águas jamais retornem para cobrir a terra. Salmo 93 celebra Sua vitória, “mais poderoso do que as ondas do mar é o Senhor nas alturas.” 124 retrata os inimigos do salmista como as águas: “eles já nos teriam engolido vivos, quando se enfureceram contra nós; as águas nos teriam arrastado e as torrentes nos teriam afogado;” e, de modo igual, salmo 127. As águas representam o caos primordial que ameaça sempre retornar quando os inimigos de Israel prevalecem ou quando o homem afunda no pecado.
A reminiscência aqui é mais que bíblica, lembrando também a criação do mundo na mitologia Babilônica, onde o herói divino Marduk cria o mundo após vencer a deusa das águas salgadas, Tiamat. De fato, alguns pesquisadores consideram que “Tiamat” possa ser a origem da palavra hebraica para o abismo, תהום (tehom).
Tais profundezas da memória são mais fundas que as águas que Scholem via ameaçarem Israel. Ele pressentia uma rebelião da língua, que apesar de secularizada nunca deixaria de também ser sacra. Mas se ela tem raízes nos nomes de outros panteões, então ela também preserva a memória de outros povos e outros cultos, de que o rio da revelação só corre entre as margens da mitologia, como dizia Schelling. Se uma tal revolta das palavras será o final do projeto nacionalista aqui, não sei. Mas um maremoto também parece um fim pouco provável.